26 de janeiro de 2010

A santa mais honesta de todas

O bem mais precioso de mamãe era a imagem de Nossa Senhora de Lurdes, que ela mantinha em cima do armário de pratos, na cozinha. Alí, era seu pequeno santuário, onde ela acendia velas. "Precisam estar acima de nossas cabeças, pra iluminar nossos pensamentos."

Desde pequena, eu vejo aquela santinha alí. Gostava de me sentar do lado oposto da mesa e ficar olhando seu manto branquinho, com detalhes dourados. Sua coroa de ouro, com um enorme rubí no meio. Sua pele gélida e pálida, seus olhos bondosos e estrábicos. Era uma santa lindinha, e eu queria ser como ela. E sabia o que fazer. Minha mãe me ensinou que aquela era a santa mais honesta de todas, e que se vivêssemos sendo sempre honestas, quando morrêssemos, poderíamos ganhar aquele mesmo manto e a aquela mesma coroa. Enquanto eu era criança, foi muito fácil ser honesta. Como por exemplo na vez em que o pai gastou o dinheiro da Feira numa aposta de rua com uns amigos, e voltou em casa dizendo que tinha perdido o dinheiro. Contei tudinho para mamãe, ela chorou e me disse pra ser sempre assim, honesta.

Papai ficou muito bravo, chorou e me disse que eu havia sido desonesta com ele, que não sabia guardar segredos. A questão se encerrou quando vovó me disse que eu teria ainda mais jóias em minha coroa se continuasse dizendo a verdade sobre papai.

Não tive mais oportunidade, papai nunca mais me levou á feira com ele, e sempre trazia a sacola cheia de frutas e verduras.

Na escola, eu tinha muita dificuldade em me concentrar. Bastava passar um Pernilongo perto de mim, e eu já não escutava mais a voz da professoras. Por conta disso, eu era muito atrasada nas matérias, e quando meus amigos passaram de ano, eu fiquei para trás. Era aquela fase em que as meninas simplesmente crescem, e eu era, então, maior que todos os alunos da minha sala. Não gostei de repetir o ano, e segundo vovó disse, eu nunca mais poderia acompanhar meus amigos, e sempre teria um ano perdido. Não chorei muito quando vovó morreu.

Acontece que, durante as férias de julho, a escola foi incendiada por um grupo de alunos baderneiros. A sala de arquivos ficou completamente destruída, e ainda as salas de materias e umas duas salas de aula também sofreram danos. Como nossa cidade era pobre, durante o resto do ano, a escola ficou fechada até poder se reestruturar. No início do ano seguinte, eles não tinham recuperado os dados dos alunos, e era preciso fazer uma nova matrícula. Usei aquela oportunidade para voltar á sala dos meus amigos!

Minha mãe e minha professora nem notaram, nem se lembravam do meu atraso. Alguns colegas questionaram o que eu estava fazendo na sala deles, e eu disse que por conta do incêndio, eu podia estudar alí de novo. Parecia uma desculpa boa o bastante. Aliás, muitos de nós usava o incêndio como desculpa pra muitas coisas!

Mas eu ainda não acompanhava as matérias, e agora me sentia ainda mais perdida. E quando decidia tentar me aplicar mais, a dificuldade de concentração não me deixava.

Era o preço pelo pecado da mentira! Comecei a rezar, ajoelhada perto do armário de pratos, para que Nossa Senhora de Lurdes me perdoasse, e não tirasse o rubí da minha coroa. Meu pai percebeu meu choro constante e veio conversar comigo. Contei toda a história, porque queria que ele delatace á mamãe, assim estaríamos quites sobre o incidente da feira. Mas ele foi muito bondoso e me ensinou a terrível arte de justificar minhas mentiras.

"Você sabe porque mentiu, minha filha? Não foi por querer acompanhar seus amigos, apenas. Foi pra poder estudar! E isso é muito digno. Tenho certeza de que Nossa Senhora de Lurdes lhe dará um rubí muito especial para colocar na coroa. Um rubí de meninas estudiosas."

Hoje eu penso em como era natural, para minha família, planejar a "pós-morte". Não entendo como pudemos ser tão macabros, mas parecia normal naquela época.

Depois de aprender a justificar as mentiras, nunca mais temí perder meu rubí, a coroa de ouro e o manto branco. Nunca mais rezei chorando perto a imagem da Santa, e, sinceramente, depois que mamãe morreu, me livrei daquela imagem estrábica. Hoje eu tenho apenas um cruxifixo simbólico pendurado na parede da lavaneria, nos fundos. Não tem necessariamente o Cristo, mas uma sombra na cruz, que é levemente retorcida. Um amigo artista foi quem me deu, mas não combinava com a decoração da sala.

Um comentário:

  1. Odete, esses seus textos mereciam ser publicados, são ótimos e acho que vc faria sucesso.
    Pense na questão.
    bjs!

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