29 de outubro de 2009

Beijo no parque

A garota escolheu uma árvore, entre tantas. Preferiu uma de tronco grosso, onde pudesse se enconstar.
O rapaz a seguiu, sentando-se á sua frente. Colocou a mochila de lado, e imediatamente viu-se nervoso, sem saber o que dizer, sem saber onde colocar as mãos, nem mesmo pra onde olhar.
Ela divertiu-se com a confusão dele por um instante. Apiedou-se da timidez exagerada e tomou o rosto fino dele em suas mãos, acariciando de leve e sorrindo-lhe, candidamente.
Ele só se acalmou quando sentiu-se roçar na língua dela. Olhos fechados, concentrado em dar o seu melhor, naquilo que podia chamar de a segunda vez que ficava com uma garota em toda a sua vida.

22 de outubro de 2009

Desfeito

Inesperadamente, o calor do pecado me arrematou de forma corrosiva. Cheguei a encolher-me toda embaixo da pele e ossos, mas nada poderia esconder minha nudez desvelada. Havia um corte em minha alma, que ia desde o meu peito até minha barriga, e de lá partia para minha cabeça a dor alucinante que eu jamais poderei esquecer.

O arrependimento é a mais letal arma contra a paz do ser humano. O Arrependimento ria-se de mim, chicoteava-me, lançava-me ás brasas e ás favas, derretendo qualquer resquício de uma felicidade efêmera e pouco honesta.

Não achei que fosse sentir o vazio. Sempre pensei naquilo que alí estava antes como um incômodo e incorreto peso. Sentia nele a falta de liberdade e só. Jamais uma companhia. E agora, sem ele, eu percebia que eram barreiras mentirosas e inexistentes as que não me permitiam vê-lo como ele realmente era: parte de mim, comigo, para mim, por minha causa.

Por mais que eu alise meu abdômen em busca de algum alívio por não sentir mais aquela barriga, que eu não considerava minha, tudo o que sinto é um estranho vazio, como se eu abrisse uma caixa de presentes e não encontrasse nada lá dentro. Como se tivesse perdido um braço ou uma perna, e agora tivesse de repensar toda a minha vida, todas as adaptações que teria de fazer para sobreviver, como uma deficiente.

Exato, eu me sentia deficiente. E os deficientes que me perdoem, talvez pensem que eu jamais poderei saber como é nascer sem ou acabar perdendo um membro durante a vida, mas eu me sinto assim. Como isso é possível?

Não consegui deixar a cama durante cinco dias contados. Via, por uma fresta infeliz da janela, que a vida lá fora continuava, agora que não estávamos mais lá. Mas eu poderia estar, e ele não. Tirei-lhe esse direito. O mundo jamais veria o quanto ele seria decadente ou brilhante.

E como, mas como doía pensar nas possibilidades que um ser poderia ter tido caso lhe tivesse sido permitido nascer. E como, mas como doía, saber que era minha a culpa de jamais sermos felicitados a respirar o mesmo ar. E pensar que, antes, ele respirava através de mim.

Cinco dias. Recebia a visita nada cordial de uma das enfermeiras. Era compreensível que uma pessoa naquele ramo obtuso fosse agressiva, mal-educada, mal-cheirosa e carrancuda, porque era justamente o que eu queria que ela fosse. Não poderia conceber uma pessoa amável e feliz por ter aquele tipo de emprego. Era bom pensar que parte da culpa era de pessoas como ela, que se sujeitavam a tudo ás custas de dinheiro.

Eu não fiz minha escolha por dinheiro, apenas. Eu fiz porque a escolha anterior não me havia sido dada. Fora imposto a mim que eu estava (e não que ficaria) grávida. Um filho gerado do ato não-consentido, da violência, da ignorância, da sujeira, da podridão. Um filho que eu poderia ter escolhido purificar com meu corpo, meus valores e, principalmente, meu amor. Mas já não seria mais possível fazer essa escolha agora.

No quinto dia de cama, a mal-encarada enfermeira me trazia um prato de sopa com cheiro forte de alho e cenoura, que me embrulhava o estômago. Olhou para minhas mãos, pousadas sobre minha barriga, alisando o ventre oco, e eu vi o incômodo em seu olhar. Ela também se arrependera? Se sim, eu tinha vontade de esbofeteá-la. O arrependimento era apenas meu, me recusaria a dividi-lo com uma pessoa tão baixa. Ela jamais poderia ter algo a ver com o sujeito que meu filho seria.

Eu sabia que era meu último dia ali, sabia que ela queria me dizer pra ir embora que minha conta já estava estourada. Sabia, mas não queria. Nem ela, nem eu. Respirar de novo aquele ar, ver de novo as pessoas, usar minhas pernas, braços, cabelos, passos, vozes. O mundo ali girando, mas eu não queria girar com ele. Queria parar, queria que ele passasse girando por mim, me virasse as costas e eu só pudesse ouvir suas risadas ao longe. O mundo era feliz quando girava. Eu era infeliz, e não era meu estado atual. Era minha condição pra vida toda.

A enfermeira recolheu meu prato. Nem percebi que a sopa já estava fria e que jazia sobre a bandeja, ignorada pela minha fome.

"Sente-se melhor?"

Eu imaginei toda a cena. Virava com uma expressão demoníaca para o lado dela, corria minhas unhas compridas por seu rosto, espirrando o sangue em todo o quarto até não restar nada mais que o esqueleto em seu lugar.

"Sim, como nunca."

"O médico quer lhe dar uma palavrinha."

E agora 'o médico' unia-se á cena e era também atacado pelo demônio que eu virara.

"É mesmo necessário? Eu sei que tenho que ir embora, porque não deixar as coisas assim, como estão? Eu me levanto e sigo. Já paguei. Pagar foi a primeira coisa que fiz."

E que continuaria fazendo pelo resto da vida.

Duas batidas leves na porta, e a enfermeira não estava mais ali, só o médico. Lembrei-me dele, pelo tom escuro dos olhos apertados.

"Sente-se bem?"

"Sim, como nunca."

"Você pode optar por tentar de novo."

"Eu jamais vou me permitir uma coisa dessas. Eu não mereço o prêmio de ser mãe, de recuperar... esqueça."

"Talvez você mereça. Houve uma complicação em seu caso. Pensamos que vocês dois morreriam, na verdade. Mas acontece que ninguém partiu. Você ainda está grávida."