1 de dezembro de 2009

Os mistérios da água gelada

Eu ouvia o murmúrio do laguinho apressado, descia correndo a montanha, passava por entre as árvores e desembocava na lagoa do meu jardim. A lagoa era muito bonita, havia ali cisnes, patinhos, peixinhos, vitórias-régias e pedrinhas coloridas no fundo, que deixavam a água em diferentes cores.

Mas o que me intrigava mesmo era aquele pedacinho do lago que chegava por baixo do portão de ferro. A água ali era sempre fria, ao passo que na lagoa (a tão pouca distância) era sempre quente.

A água quente me irritava um pouco. Não gostava de sentir minha mão por baixo dela. Parecia que todos os peixinhos, cisnes e patinhos haviam feito tanto xixí que a água não esfriava mais. Eu mesmo, uma vez, só de raiva, fiz um pouquinho de xixí ali. Não foi tão pouco, mas é que eu estava apertado, e não dava tempo de ir até o banheiro!

Quando eu ganhei de Vovó Amélia um boneco de pano que, todos diziam, era muito parecido comigo, eu fiquei muito feliz! Porque sendo uma versão tão pequena de mim mesmo, eu poderia molhá-lo inteiro no laguinho! Agradeci muito á vovó e fui correndo pro jardim. Agachei-me bem junto ao portão e enfiei o boneco na água. Imediatamente, ele ficou gelado, e sua pele ficou transparente. Dava pra ver as espumas dentro dele. Fique com nojo e larguei. O laguinho levou-o pra lagoa e assustou os patos, foi uma barulheira.

Quando a Caroline chegou, ela tapou a boca com a mão. Ela tinha ganhado uma boneca de porcelana que, também, todos disseram ser parecida com ela. Mas eu não achei nem um pouco, se quer saber. Meninos não gostam de boneca, mas aquela era tão bonita que era impossível não gostar! Tinha assim uns lábios vermelhos polpudos, uma pele branca e lisinha, olhos azuis como as contas do Rosário de Vó Amélia, cachos dourados e macios. A roupinha também era linda, cheia de flores e babadinhos. E tudo nela brilhava! Aquele brilho, assim, de coisa nova.

Caroline não tinha nem mesmo os cachos! E o loiro do cabelo dela parecia mais com marrom do que com amarelo. E seus olhos não eram azuis, eram de um verde quase cinza, parecendo uma água suja de não-sei-o-que.

Ela ficou ali, que nem boba, vendo meu boneco boiar. Depois correu pra dentro, e eu que não sou bobo, corri atrás. Mas antes de chegar à sala onde todo mundo estava sentado, conversando, eu subi as escadas e fui pro meu quarto. Sentei no meio do tapete e fiquei brincando com meu coelho velho de pelúcia. Aquele coelho nunca me dera trabalho, pelo menos não tanto quanto o boneco que vovó Amélia fez!

Depois de só uns minutinhos, já vinha minha mãe. Olhou-me com aquela cara de limão azedo e apontou pra janela. Ah, que dó! Severino estava mergulhado na lagoa, assustando todos os bixos, só pra pegar aquele boneco! Tadinho do Severino! Eu quis chorar. E tive mesmo que chorar, porque mamãe me repreendeu, e depois veio papai, que se trancou no quarto comigo. Conversa de homem, sabe como é. Mas acho que meu pai misturou as coisas, porque falou de tudo, menos do boneco molhado.

Quando terminou, Caroline apareceu na ponta do corredor, segurando a boneca e puxando desajeitadamente os cachos. Disse que meu boneco agora era o Cristo, e que mamãe disse que só ressuscitaria no terceiro dia. Fui até a lavanderia e levei um susto. O boneco estava com um pregador em cada mão, esticadas feito Cristo na Cruz, mesmo.

Demorou três dias pra secar completamente.